domingo, 14 de fevereiro de 2010

Enfermatizando..


A propósito de uma das disciplinas teóricas deste ano, pediram-nos, lá na faculdade, pa escrevermos um relatório critico sobre um dos seminários. Depois de o ter feito, eis que me sugeriram que o enviasse para os sites mais criticos que existem em matéria de enfermagem. Antes de o fazer, deixo aqui esse mesmo relatório, para que se veja a minha perspectiva e também, para dar a conhecer mais um pouco das nossas lutas.






(...)


"Uma Ordem é uma associação pública, de direito público, criada e extinta por lei, monoprofisional, privativa de algumas profissões que são autónomas, independentes, e academicamente tituladas e com filiação obrigatória. Ou, segundo Vital Moreira, são a forma mais típica de auto-regulação profissional. Foi criada em 1998, através do Decreto-Lei 104/98, de 21 de Abril, e surgiu da necessidade de: (1) reconhecer a enfermagem como comunidade profissional e cientifica da maior relevância no funcionamento do sistema de saúde, de (2) reconhecer o nível de formação académica dos enfermeiros (do Bacharelato à Licenciatura), (3) promover o desenvolvimento da investigação em Enfermagem, (4) corresponder ao crescimento do conhecimento da população face aos seus direitos e da exigência de bons cuidados de enfermagem, (5) auto-regular e controlar o exercício da profissão e (6) existir um código deontológico. Pretende, assim, dar resposta as necessidades dos cidadãos. Sendo de filiação obrigatória, a OE é constituída por todos os enfermeiros portugueses, só os membros da OE podem utilizar o título de enfermeiro e é uma profissão de exercício exclusivo. A OE é independente do Estado, sendo sempre livre no âmbito das suas atribuições (embora seja uma associação pública). Tem como principais funções: apoiar os membros, representar e defender a profissão face ao exterior assim como regular e disciplinar a profissão. Como principais atribuições, cabe à OE, entre outras: zelar pela função social, dignidade e prestígio da profissão de enfermagem, promover a solidariedade entre os membros, assegurar o cumprimento das regras de ética e deontologia profissional, assim como registar os enfermeiros e atribuir títulos. Neste contexto, insere-se, por exemplo, o recente Modelo de Desenvolvimento Profissional, que, a enfermeira abordou num momento posterior, pelo que farei referencia a ele também posteriormente.
De seguida, foi abordada a Rede de Jovens Enfermeiros, constituída em 2008. Esta vertente do seminário despoletou em mim grande curiosidade. Penso que se trata de uma mais-valia, especialmente para nós, alunos, quase recém-licenciados, e especialmente num momento como este, de tantas incertezas relativamente ao futuro, dado o panorama do Modelo de Desenvolvimento Profissional (MDP) e dos últimos avanços, digo, recuos, que o Ministério da Saúde pretende impor a classe de enfermagem. Desconhecia por completo esta associação. Relativamente à exposição que a enfermeira Margarida realizou sobre esta rede, apesar de ter contribuído para o conhecimento da sua existência, não elucidou muito sobre o modo de funcionamento, processos para inscrição e participação. No entanto, é sabido que tem como alvo os estudantes de enfermagem, recém-licenciados e jovens enfermeiros. Dada a sua relevância para a integração dos jovens, esta poderá passar a ser uma temática abordada, numa unidade curricular do Curso de Licenciatura. Tem como plano de acção: (1) a vinculação à profissão (como processo e não como momento), através da intercolaboração com órgãos estatutários, (2) a monitorização da situação profissional e fenómenos de migração dos jovens enfermeiros, (3) propostas de intervenção directa (proposta para carta de princípios de recrutamento para as instituições e fórum de discussão).
Posteriormente, a enfermeira expos as mais recentes actualizações realizadas na enfermagem: modelo de desenvolvimento profissional e alterações na carreira de enfermagem. Esta foi, sem dúvida, a temática que mais debate e controvérsia instaurou no seminário.
Na minha opinião, os propósitos com que este ideal foi concebido – regular o acesso a profissão – são aceitáveis, no entanto, ainda enquanto aluna, considero que os meios utilizados não são, de todo, justos. Li, algures na pesquisa que vou fazendo relativamente a esta temática, que entrar para um curso para ingressar numa actividade que se ouve dizer que tem "falta de profissionais" e depois de quatro ou cinco anos, vir para o mercado de trabalho e demorar meses a encontrar o primeiro emprego com contratos de três ou seis meses é ser esmagado. Mas, este modelo traz muito mais que um esmagamento. De facto, com a aplicação deste modelo, os futuros recém-licenciados em enfermagem vêem-se, por ventura, proibidos de desfrutar do objectivo por que lutaram, e de receber a “recompensa” pelo investimento pessoal, económico, familiar de, no mínimo, quatro anos empregues na licenciatura. Como algumas dúvidas surgiram, segui, de certa forma a sugestão da enfermeira Margarida e reli a Newsletter da OE exclusiva para estudantes, relativa ao MDP (Volume 1, Edição 1 - Abril 2009).
Segundo essa mesma Newsletter, o MDP assenta em dois “pilares” fundamentais: o sistema de Certificação de Competências e o Sistema de Individualização de Especialidades em Enfermagem. Com este modelo, pretende-se deixar de atribuir títulos profissionais de forma administrativa e passar a certificar as competências de enfermeiro e de enfermeiro especialista de forma segura para o profissional e para os clientes, através da criação de um período de Exercício Profissional Tutelado (EPT), garantindo, assim, qualidade.
Este EPT seria “um período de indução e de transição para a prática profissional (enfermeiro) ou para a socialização a um novo perfil de competências (especialista), suportando a gradual assunção de responsabilidade e intervenção autónoma, de forma que se pretende segura para o profissional e para os clientes” (OE, 2009, p.2). Trata-se de um período de desenvolvimento profissional que deve acontecer de forma acompanhada, num processo de Supervisão Clínica. “Queremos um período de tempo de exercício profissional tutelado, porque isso é importante para a transição e a iniciação profissional” (OE, 2009, p.2). Ora, tal como os meus colegas insistentemente referiram, porque haveríamos de realizar este internato, se, um dos ensinos clínicos do curso de licenciatura se denomina de “Estágio de Integração à Vida Profissional” (IVP), na qual, tal como também foi referido, os critérios de avaliação têm como pressuposto as competências de um enfermeiro generalista, emanadas pela OE? Aliás, em todos os ensinos clínicos do 4º ano, a grelha de avaliação tem como base esse documento. Tenho conhecimento que o plano de estudos de outras escolas também incluem um estágio correspondente ao “nosso” IVP, embora não saiba se também se rege pelos mesmos critérios de avaliação.
Estou certa de que, para este modelo ter sido concebido, haverá de acarretar vantagens para a profissão, conferir-lhe, talvez, algum elitismo. No entanto, e embora saiba que a OE não tem capacidade de regulação das escolas de enfermagem e somente pode orientar a estrutura geral dos cursos de Enfermagem, penso que a solução poderia passar tanto pela acreditação das escolas, de alguma forma, através de auditorias, assim como pela redução do número de vagas. Apesar de todo o panorama “adverso” que a profissão atravessa, observa-se um crescente aumento do ingresso de alunos do ensino secundário para as escolas de enfermagem, assim como uma proliferação de escolas de enfermagem com números de vagas cada vez superiores.
Retomando a Newsletter e analisando-a, deparo-me com o seguinte parágrafo: “”Quando a OE atribui um título profissional reconhece competência científica, técnica e humana para a prestação de cuidados de enfermagem ao indivíduo, à família e à comunidade, nos três níveis de prevenção”. Este paragrafo evidencia que, até a este momento, têm sido reconhecidos enfermeiros de qualidade, o que tornou pertinente a questão do meu colega: “o que temos nós agora de diferente relativamente a todos os enfermeiros até agora licenciados?”. Embora compreenda a revolta, e partilhe da opinião de que este modelo assemelha-se a um “atestado de incompetência às escolas”, reconheço que o comportamento dos meus colegas não foi o mais adequado, partindo, por vezes, para comentários algo pessoais relativamente à enfermeira, reflectindo também, por vezes, algum desconhecimento da situação e de parâmetros legais envolventes, o que reflecte algum desconhecimento e envolvimento cívico.
Uma outra questão que me intriga e faz compreender ainda menos este modelo, prende-se com o actual mercado de imigração: recém-licenciados partem para o estrangeiro em busca de trabalhos, que, conseguem com facilidade e condições de trabalho bastante satisfatórias. É, de todo, difícil compreender a rejeição que “o país” tem para com esta classe profissional, embora se saiba que estão também inerentes as questões do reconhecimento social da profissão. O processo de aprovação deste modelo foi, a meu ver, algo precipitado: se, por um lado, pareceu um pouco uma imposição da direcção da OE (corriam comentários, no decorrer do meu 1º ano do curso, da existência de três votações para aprovação destas alterações, o que seria “ilegal”), por outro, foi aprovado na Assembleia da República sem que muitos aspectos prioritários estivessem definidos (tal como a duração do internato e o suposto regime remuneratório). Aliás, este último aspecto suscita-me imensas dúvidas: um governo, como o actual, que pretende não só não atribuir um salário base de licenciatura à classe de enfermagem como pretende baixar esse valor, irá aceitar remunerações para “enfermeiros provisórios”? É certo que os parceiros desta iniciativa ponderaram os seus próprios interesses, e, acredito que para o Estado esta medida signifique “reciclagem” de mão-de-obra barata, pois nos serviços estarão estagiários de enfermagem, “enfermeiros provisórios” (que irão acumulando, pois o internato é selectivo, e nem todos passarão ao “estatuto” de enfermeiros), bem como, a meu ver, um número cada vez mais reduzido de enfermeiros vinculados. Retoricamente continuo a questionar-me: como funcionaria este serviço sem estudantes de enfermagem? Seriam os mesmos cuidados básicos prestados? Se já com estagiários todo o trabalho a realizar é demasiado para um turno de, aproximadamente, sete horas, como seria sem estagiários? Segundo a Newsletter, a OE refuta que se trate de mão-de-obra barata, referindo que um Licenciado em EPT não vale para calculo de dotações o mesmo que um enfermeiro. Será mesmo assim que será realizado? Não haverá enviesamentos?
“Admitimos a seriação dos candidatos para a colocação no EPT porque um licenciado que tenha estudado em Lisboa poderá ter de fazer o EPT em Faro ou no Porto, mas apenas para efeito de distribuição e não de exclusão do EPT” (OE, 2009, p. 2). Terão os licenciados acesso a complemento relativo à deslocação? Mais sinais de precariedade nas condições do EPT?
Várias vezes ao longo do texto se referencia “Órgãos de EPT” – quem fará parte destes órgãos? Há orientações neste sentido? Não deveria ter sido estipulado aquando da aprovação do MDP?
Existindo cursos de Especialização em Supervisão Clínica, serão a estes que a OE irá recorrer para certificar os tutores? As escolas não tem “credibilidade” para formar profissionais, mas tem para supervisores?
Esta precipitação suscitou-me um pouco mais de desilusão relativamente a estes membros directivos da OE, e levou-me a compreender comentários que ouvia como “esta Ordem parece nossa inimiga”, “a Ordem parece só querer o nosso dinheiro das quotas”. É, de todo, triste, visualizar este panorama: ter, simultaneamente, tanta paixão pelo que se faz, e, não ter mais, por não haver valorização social e por vezes, nem mesmos os próprios enfermeiros não se valorizarem, por não lutarmos, unidos, pelo que é nosso: a enfermagem! Sermos sugados pela precariedade, e não reagir com medo de perder o emprego. Tenho verificado, por parte da OE, recentemente, uma constante tentativa de “imitação” da classe médica, nomeadamente, ao nível do funcionamento da Ordem dos Médicos, como são exemplo a proximidade da criação de “Colégios da Especialidade” e do “Internato de Enfermagem”. No entanto, estas tentativas têm sido frustradas: assiste-se a medidas que têm contribuído somente para a degradação social da classe. Não deveria a OE para defender a classe? A própria reestruturação da Carreira de Enfermagem, tal como evidenciamos nas aulas, levará a alterações no percurso da carreira de enfermagem defendido por Patrícia Benner. Estão os “enfermeiros provisórios” incluídos na 1ª etapa da carreira de enfermagem proposta por esta autora? A OE refere ainda: “Queremos um modelo que o promova e permita, até porque cada vez mais na sociedade actual, e acreditamos que essa é também uma tendência que se acentuará no futuro, os cidadãos precisam de respostas de enfermagem especializadas.” (OE, 2009, p. 4). A extinção da categoria de Enfermeiro Especialista e, consequentemente, a extinção desse regime remuneratório poderá originar um desinvestimento na formação, originando cuidados diferenciados de menor qualidade, ou, na pior das hipóteses, cuidados que passarão a ser desempenhados, convenientemente, por outras classes profissionais. Esta é uma visão algo exagerada e negativista da situação, mas a ideia de investir numa formação que custa milhares de euros do próprio bolso (cada vez menos recheado) e não ter certeza de no fim contribuir para o estatuto profissional e salarial, origina desmotivação. Não deveria a OE fomentar a dignificação da profissão e defender os interesses dos seus elementos? Se quer induzir um sistema que tendencialmente potencia a especialização dos enfermeiros, porque extingue esta categoria ao invés de facilitar a obtenção de melhores regimes remuneratórios para os enfermeiros especialistas?
Várias questões ficaram por colocar. Muitas ainda, de certeza, surgiram desta reflexão. É muito ingrato reflectir e constatar que pouco ou nada podemos fazer perante esta panorama."






Patrícia Lopes

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